terça-feira, 24 de maio de 2011

VOCAÇÃO DA BEATA IRMÃ DULCE PARA O SERVIÇO DOS POBRES.



IRMÃ DULCE, O ANJO BOM DA BAHIA




GAETANO PASSARELLI



APRECIAÇÃO DE FREI HUGO FRAGOSO



O Livro de Gaetano Passarelli, “IRMÃ DULCE, O ANJHO BOM DA BAHIA”, é um livro de agradável leitura. É um livro “gostoso”, como se diria na linguagem popular. E por ser “gostoso”, a gente tem vontade de lê-lo de um só “trago”.

O autor soube aliar um estilo agradável a uma profusa documentação histórica. Se a obra não obedece aos cânones de uma tese acadêmica, nem por isso, deixa de ser uma obra científica.

Dizer que o estilo de Passarelli é “romanceado”, não é inteiramente exato, pois, “romance” na acepção costumeira, tem a conotação de “obra fantasiosa”. O que não se dá com o livro de Passarelli. O que na realidade ele expressa é um estilo “vivenciado”, ou seja, ele toma os documentos mortos e dispersos pelos vários arquivos, e lhes “dá vida”, fazendo-os mover-se na trama da narração, que até parece um “filme”, cujas cenas desfilassem sob os nossos olhos.

E através de toda essa seqüência de fatos, há um “fio condutor”, que acompanha a narração da vida de Ir. Dulce, desde os seus anos de infância e adolescência, até sua carta-testamento, quando ela pressentia a aproximação do seu fim. Esse fio condutor é uma VOCAÇÃO PARA ESTAR A SERVIÇO DOS POBRES. O amor aos pobres foi para Irmã Dulce, antes de tudo, uma herança familiar, sobretudo paterna. Foi nesse caldo cultural, de serviço aos pobres, que ela teve sua infância e adolescência, a imprimir todo um direcionamento à sua vida. E foi dentro dessa atmosfera de sensibilidade caritativa , que ela foi fazendo a descoberta da pobreza, em sua realidade chocante, como uma “navalha na carne”, a torturar seus irmãos e irmãs desvalidos.

Tal descoberta significou, ao mesmo tempo, um chamado de Deus, como o fora para Francisco de Assis a descoberta do Cristo excluído, no irmão leproso.

Coincidentemente, tanto a freqüência à igreja de S. Francisco, quanto sua aproximação com as Irmãs Franciscanas do Convento do Desterro, a levaram na direção do exemplo de Francisco de Assis. Uma vida toda a serviço dos pobres se consumou com sua entrada na Congregação das Irmãs Missionárias da Imaculada Conceição da Mãe de Deus, cujo carisma fundamental, inspirado no Poverello de Assis, era a evangelização entre os mais necessitados.

Foi nessa caminhada vocacional que Irmã Dulce se encontrou com Frei Hildebrando Kruthaup, o qual desde menina ela adotara como seu confessor.

Era o encontro do “coração” (Ir. Dulce) com o “cérebro” (Fr.Hildebrando). Tal encontro, de um lado, significou uma complementação para Irmã Dulce; mas, por outro lado, não deixaria de suscitar um certo desencontro. Pois, Irmã Dulce sempre irá raciocinar com o “coração”, e não com o “cérebro” da lógica hildebrandiana.

Esse modo de ser de Irmã Dulce se tornou bem perceptível, na ocasião em que ela foi, como freira nova, destinada ao Colégio Santa Bernardete. A própria Madre Provincial assim se expressou sobre Irmã Dulce: “Acredito que ela tenha apenas um pensamento: sair do Colégio para andar, entre esses barracos e recolher as crianças, para fazer o bem e ajudar as pessoas, por caridade!..mas na escola é um desastre!” (p. 69). É que a escola era o espaço do “cérebro”, e os barracos, o espaço do “coração”.

A estrela de Irmã Dulce irá ofuscar, em grande parte, o brilho do gênio de Frei Hildebrando, embora tenha esse propiciado a Irmã Dulce um candelabro especial, sem o qual o brilho da estrela da Mãe dos Pobres, talvez não tivesse conseguido atingir o mesmo horizonte de publicidade. Mas no coração do nosso povo brasileiro, a linguagem do “coração” tem mais ressonância que a linguagem do “cérebro”.

É de justiça, porém, reconhecer não somente a herança de um grande coração, que foi Irmã Dulce, mas também o legado de Fr. Hildebrando, que não tinha outro “pensamento”, que a promoção do nosso povo pobre. Um dia, talvez, se faça na Bahia a justiça devida àquele, que lhe consagrou toda a sua existência...

Mas, voltemos ao contexto da união dos empreendimentos de Ir. Dulce e de Frei Hildebrando, ou seja, a fusão da União Operária com a obra social de Frei Hildebrando, que resultou no Círculo Operário da Bahia. Sustenta Passarelli que à Irmã Dulce o que “interessava era ter carta branca e dispor de meios para ajudar aqueles que dela necessitavam” (p. 93).

Não me parece ter sido expressa com exatidão a assertiva de que o “hibridismo” entre as obras do Anjo Bom da Bahia e do gênio empreendedor de Frei Hildebrando, tenha decorrido do fato de que Irmã Dulce tinha por objetivo a “ação”, e não o “comando”. Pois, ambos visavam a “ação”, mas cada qual a seu modo. E o “comando” era exercido em forma patriarcal, por Frei Hildebrando, e em forma “matriarcal” por Irmã Dulce; mais ainda, quando Frei Hildebrando se afastou do Círculo Operário. Essa forma matriarcal de comando era sentida, mediante uma presença, a impregnar de amor e respeitabilidade toda a obra que ela gerara de suas entranhas. Simplesmente não se concebia qualquer tentativa de delimitar o âmbito de sua ação maternal, dentro do Círculo Operário.

O autor afirma, à página 181(por ocasião do conflito entre o Círculo Operário e Frei Hildebrando), que “a sua atitude inclinada a ratificar o verdadeiro poder do assistente eclesiástico anulava também o seu carisma de fundador”. É de lembrar, porém, que estavam em conflito toda uma mentalidade clericalista de Igreja, onde o clérigo tinha praticamente o poder de decisão nas associações consideradas “eclesiásticas” – e uma nova mentalidade, suscitada sobretudo pela Ação Católica, dando aos leigos participação nas decisões sobre a realidade em que eles atuavam. Representantes da primeira mentalidade eram Frei Hildebrando e Frei Romano Voglmaier; representantes da segunda eram Frei Joaquim da Silva e Frei Gil de Almeida Bonfim, imbuídos que estavam no ideal da Juventude Operária Católica.

Com exatidão, porém, é afirmado, a seguir, que o raio de ação de Irmã Dulce era a “pobreza” e a “miséria”. De forma que ela, embora trabalhando no Círculo Operário da Bahia, nunca assimilou como sua ação específica “a organização operária” .

O horizonte mental de Irmã Dulce não alcançava as grandes estruturas sociais, pois, sua percepção estava voltada para os “efeitos”, que atingiam as pessoas concretas, esmagadas pela pobreza e miséria. Ela assim percebia os operários, como bem chegou a afirmar: “Os operários são como os pobres. Se, na realidade, não têm trabalho, não fazem parte da classe dos pobres?” (p. 88).

Lembro-me que na década de setenta, fazia eu um levantamento de opinião no meio universitário, sobre o problema das vocações religiosas. Uma das perguntas assim era formulada: ”Você acha que os frades e freiras têm compreensão pelo sofrimento do povo?” – A resposta foi quase unânime: “Sensibilidade, sim; compreensão, não!” E assim explicitavam eles: Os frades e freiras têm “sensibilidade” pelo sofrimento do povo, pois, por sua formação religiosa, não podem ver um doente, que logo não se apressem em colocar um esparadrapo sobre a sua ferida. Mas, falta-lhes a “compreensão” das causas profundas daquela ferida, causas essas com as quais tantas vezes eles próprios são coniventes.

Essas causas profundas da ferida social, que como “uma navalha na carne” atormentavam os pobres, não caíam no horizonte visual de Irmã Dulce.

Ao assumir o Círculo Operário, como espaço de sua “ação caritativa”, Irmã Dulce tinha o horizonte visual da Rerum Novarum, que era a visão do Círculo Operário de então. Dentro dessa visão, o problema social era visto sob o prisma de uma “família empresarial”, constituída de patrões e operários. A Igreja devia estimular a “harmonia” entre ambos, e jamais a “luta de classes”. Para os homens de Igreja “com a cabeça feita” pela Rerum Novarum , era inconcebível admitir-se que a “luta de classes” não era um perigo futuro a ser evitado, mas uma realidade histórica, estruturada e legalizada dentro do sistema econômico capitalista.

A visão social de Irmã Dulce não passou da Rerum Novarum. A Mater et Magistra, ou a Populorum Progressio, não tiveram ressonância no horizonte de sua percepção.

De forma que, assim poderíamos resumir a visão social de Irmã Dulce. VISÃO PERRSONALISTA é o prisma de todo o seu horizonte social. Ela bem significativamente afirmava: “Para mim, o pobre, o doente, aquele que sofre, o abandonado, é a imagem de Cristo” (p. 108). Seu olhar, sensível a todo irmão esmagado pela dor, não alcançava que essa imagem de Cristo estava empobrecida e abandonada, por causas bem concretas. Sua percepção não via que essa imagem de Deus era injustiçada e esmagada por estruturas sociais, que Puebla classificava de “estruturas pecaminosas”.

Essa visão personalista foi por ela bem expressa, nos começos de sua atividade apostólica: ”A experiência lhe mostrou que...fazia-se necessária uma ação minuciosa com cada um deles [trabalhadores], interessar-se pela sua vida, pela sua família, pelas suas necessidades...” (p. 80). Era essa linguagem do coração que se impunha primeiramente, pois, sem essa abordagem inicial, ”era totalmente inútil falar de fé ou de direitos dos trabalhadores ou da dignidade do homem”.

Quando criticada pela prática do assistencialismo, ela respondia dizendo: “Muitas pessoas afirmam que eu faço mal em proteger e defender os pobres...desamparados irmãos pobres!...só quem convive diariamente com eles pode avaliar o quanto sofrem, o quanto necessitam da palavra de Deus, de uma mão amiga que se estenda em direção às suas. Eles hoje estão morrendo, e não sabemos se estarão vivos num amanhã, quando conseguirmos aquilo que é, sem dúvida alguma, um sacrossanto objetivo” (p. 88-89). Era como se dissesse: Quem está com fome hoje, mata a fome com pão hoje! Quem está enfermo hoje, deve hoje ser tratado. Pois, projetos de transformação de estruturas, embora sendo “um sacrossanto objetivo”, devem ficar para amanhã...

Esse personalismo da visão social de Irmã Dulce, envolvia também mobilizar outras pessoas, pois, como escreve Passarelli, interpretando o pensamento de Irmã Dulce: “A seara era muito grande e implicava envolver outras pessoas” (p. 86). E no envolvimento dessas outras pessoas - sobretudo “pessoas de posses” - usava ela a linguagem do coração, e não a do cérebro. Para Irmã Dulce o “capitalista” não era encarado como detentor de estruturas econômicas, a esmagarem os pobres, mas como pessoas, que podem ser convencidas a ajudar os pobres. No mundo mental de Irmã Dulce não havia lugar, como dissemos atrás, para a “luta de classes”, nem mesmo para “a nobre luta”, de que falava o Papa João Paulo II, em alocução aqui no Brasil..

Essa linguagem de coração para coração é bem expressa por Passarelli, nestes termos: ”A flor [que costumava levar na sacola], o sorriso e as palavras, mas, principalmente, a ação de Dulce, fazia com que as pessoas e as instituições contribuíssem” (p. 197).

Nesse método personalista e nessa abordagem com o coração, “Dulce não reclamava de ninguém, todos são bons para ela” (p. 218). “Tudo que puder ajudar a obra, eu considero bom” (p. 232).

E finalmente esse seu modo de agir personalista encontra um coroamento final em sua carta-testamento, dirigida ao banqueiro Ângelo Calmon de Sá (15/02/1984), onde Irmã Dulce declara: ”Entrego às suas mãos generosas e ao seu bondoso coração os nossos doentes, os nossos pobres, as nossas crianças” (p. 234). Irmã Dulce entrega ao banqueiro, não simplesmente sua “obra”, como uma instituição impessoal, mas lhe confia as pessoas dos doentes, dos pobres e das crianças. E lhe faz um pedido, para que “procure na medida do possível manter nas suas mentes [das pessoas co-responsáveis] e despertar nos seus corações a chama do sacrifício, e da doação àqueles que nos estão confiados”! (p. 235).

Dentro desse visão personalista e desse raciocinar com o coração, Irmã Dulce deixa pouco ou nenhum espaço para a linguagem da “justiça”. Justiça lhe parece mais uma linguagem do “cérebro”, e não do coração, cujo idioma é o “amor”. Seu horizonte visual não alcançava a dimensão da Justiça, de que falava o Papa João Paulo II, dirigindo-se ao clero de Roma: ”A Justiça é a própria caridade em forma de exigência”.

De igual modo, não alcançava Irmã Dulce a dimensão de uma “ação política”, a não ser como política partidária, que ela rejeitava categoricamente. Ela não chegou a assimilar o sentido abrangente de “política”, como interesse pelo bem comum, que é um dever de todo cidadão. Ou melhor, para o seu raio de ação, o “interesse pelo bem comum” se expressava na ajuda aos pobres, e se os políticos ajudavam seus pobres, então estavam cuidando do “bem comum”. Mais além desse horizonte, não chegava o alcance de sua visão.

Diz Passarelli que Irmã Dulce atuava “fora de qualquer lógica partidária e política” (p.113). E explicita que ela “possuía uma mentalidade prática e muito pouco teórica, isenta de qualquer tendência político-partidária e ideológica. Seu objetivo era apenas um: ajudar os necessitados, imediatamente e de maneira mais eficaz” (p. 136). Aliás, diga-se de passagem, Irmã Dulce estava longe dos vários sentidos de “ideologia”, usados na linguagem dos bispos latino-americanos em Puebla.

E a própria Irmã Dulce culmina: ”Eu não entro na área política, não tenho tempo para me ocupar com as implicações partidárias. O meu partido é a pobreza” (p. 136). Ela, no entanto, chegou a perceber que sua candura e inocência poderiam ser instrumentalizadas por políticos interesseiros. Por isso, afirma resolutamente: “Eu só não gosto quando usam meu nome para orquestrar simpatias” (p. 136).

Uma instrumentalização de sua atividade caritativa se deu, por exemplo, quando procuraram usar seu nome como antítese á ação profética daqueles bispos, de que fala Passarelli, à página 196: “A Conferência Nacional dos Bispos Brasileiros fez duras críticas aos métodos utilizados pelo regime e por uma parte conspícua da Igreja, e, dirigida pelo novo arcebispo de Olinda e Recife, D. Hélder Câmara, posicionou-se a favor dos protestos dos operários-estudantes, surgindo, assim, os primeiros padres e religiosos subversivos nas prisões”. Irmã Dulce não demonstra em toda documentação apresentada por Passarelli, nenhuma ressonância a tal instrumentalização.

Aliás, teria sido conveniente um aprofundamento da posição de Irmã Dulce, face a toda uma Igreja profética, que justamente por ser profética, era contestada pelos detentores do poder político e econômico, na longa noite de angústia da Ditadura Militar. Tudo indica que Irmã Dulce concentrava-se em seu “instrumento” pessoal, dentro da grande orquestra dos que se dedicavam ao problema social. Não era dominada pela preocupação de harmonizar seu instrumento (serviço caritativo) com outros instrumentos, como o da “justiça do Reino” . Aliás, todo o contexto parece indicar que ela não tinha uma visão muito clara do conjunto da orquestra.

De igual modo teria sido bom explicitar as palavras de Tereza de Calcutá, esquivando-se a um trabalho conjunto com Irmã Dulce: ”Eu desejo trabalhar para os pobres, mas sem responsabilidade financeira” (p. 229).

De tudo que dissemos, podemos sintetizar que Irmã Dulce em sua atividade caritativa, estava mergulhada num problema cuja dimensão ultrapassava seu horizonte de “consciência possível”. O problema social era um problema que angustiava toda a Igreja, em cujo âmbito Irmã Dulce desenvolvia sua atividade caritativa. Não podemos restringir-nos apenas ao horizonte visual de Irmã Dulce, na limitação de sua “consciência possível”. Daí, não podermos apresentá-la simplesmente como “o modelo”, em detrimento de toda uma Igreja profética.

Claro que na Igreja deve sempre haver lugar para um pluralismo pastoral e teológico. E eu acrescentaria, que até houve lugar para um pluralismo “magisterial”. Pluralismo, que deve ter sua leitura, dentro do princípio de Santo Agostinho, assumido pelo Vaticano II: “No essencial haja unidade; nas coisas opináveis, haja liberdade; em tudo haja caridade”. E expressão máxima desse pluralismo “magisterial” foi a beatificação simultânea de Pio IX, representante lídimo de um “fechamento” de Igreja, e de João XXIII, expressão eloqüente de “abertura” eclesiástica.

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